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II – D. Irma e o voo libertário do magnífico pássaro sem asas

Segunda parte e final

 Prezad@s leitor@s, lembro-lhes antes, de que, a primeira parte desta série, foi encerrada da seguinte maneira:

Bati levemente na única porta do que achei que seria a porta da sala, porque era do cômodo do meio.
Aí sim!! ouvi um som bem baixinho, parecido com “empurre”, mas dito de maneira tão enrolada, que apenas me pareceu isso, porém, mesmo intrigado se era isso mesmo, empurrei a porta e abri.
Surpresa. Surpresa total!!!! “. 

Continuando a série. 

Dei de cara com uma senhora bem idosa, sentada em uma poltrona antiga, que era na verdade, um cadeirão muito tosco, de madeira. Tinha as duas pernas estiradas para frente, cobertas por um lençol curto, em um apoio, que se projetava do assento do cadeirão. 

Movia apenas a cabeça e seus dois braços, porém, levemente. Estes braços quase imóveis, descansavam permanentemente sobre os braços do cadeirão, que tinha, também, quatro rodinhas de madeira, provavelmente, para pequenos deslocamentos. Nenhum outro movimento. Meu Deus…!!!

Ah!! um urinol, tipo penico, era perfeitamente visível, centrado bem embaixo da tal estranha e tosca poltrona de madeira, ou cadeirão. 

Boa tarde Sra!! Desculpe-me!! Meu nome é Gilmar, sou estudante, sou seu vizinho de cima. Minha bola caiu aqui do seu lado, e como ninguém respondeu meu chamado, dei a volta pela rua, para pegar a bola. Bati palmas e como o portão estava destrancado, entrei. Desculpe-me ter entrado assim na sua casa. Só vou pegar minha bola….. 

Prezad@s leitor@s, permitam-me agora, uma pausa para chorar. Não há um só momento em minha vida, que quando recordo esse dia, consiga conter as lágrimas.(…….). Pronto, passou, posso continuar. Agradeço a compreensão.
E nos seis anos seguintes, tempo em que residi em São Carlos como estudante, visitei D. Irma pelo menos uma vez por semana. Mesmo quando mudei de república, ou em tempo de férias escolares. 

No começo, a comunicação foi difícil, eu não entendia absolutamente nada, do que ela falava. Além da imobilização corporal quase total, naquela cadeira adaptada, também a fala tinha sido afetada drasticamente, e apenas um linguajar bem enrolado, permitia a comunicação com outras pessoas. 

Pacientemente, fui captando e decodificando aquele estranho vocabulário, e milagrosamente, após as primeiras visitas, iríamos estabelecer boas conversas cotidianas. Ficamos amigos….
-Boa tarde, eu me chamo Irma. Muito prazer em conhecer o senhor…

D. Irma, um pássaro lindo, maravilhoso, magnífico, preso naquela gaiola em forma de cadeira artesanalmente e especialmente adaptada para a sua imobilidade. Ô vida…!!! Um pássaro especial, porque não tinha asas…mas um pássaro lindíssimo!! 

Primeira surpreendente e inefável constatação da beleza deste pássaro: D. Irma sorria. Descobri isso quando ela tentava levantar a cabeça sempre parcialmente pendente para baixo, para me fitar, mesmo que rapidamente. Sorria com os olhos!!! (Estou chorando novamente). 

A boca toda retorcida, a língua toda enrolada, emitiam um som curto, repetitivo muito característico, aparentemente sem nexo, que correspondiam ao olhar sorridente.
Mais belezas: D. Irma não falava mal de ninguém. Tinha bom humor, boa memória, juízo perfeito, não reclamava de nada, de ninguém ou de coisa alguma. 

Casada com o Seo José, mãe de três filhos (dois homens e uma mulher), vivia naquela casa com o marido e o filho mais novo. Como ela faleceu em 1977, eu calculo que tenha vivido ali, sentadinha imobilizada naquela cadeira gaiola, por uns sessenta anos.

A filha e o outro filho eram casados e tocavam suas vidas em São Carlos mesmo, porém distantes. O filho residente, saia para o trabalho bem cedinho e só voltava à noitinha.  Seo José, o marido, aposentado, saia bem cedinho, também, e só voltava à noitinha!!. Creio ser adequado, não dar outros detalhes sobre eles, porque creio que assim é melhor, e pronto!!! 

Porém, creio ser adequado, esclarecer que a filha ia lá de vez em quando, dar um banho de bacia na mãe, trocar-lhe a roupa e cortar-lhe os cabelos.  Na casa não havia rádio e muito menos televisão. 

Praticamente, toda à tarde, eu ia bater um papinho rápido com D. Irma. Ou no mínimo, pelo menos, uma vez por semana. Meu Deus!!, quanta coisa eu aprendi com ela.
Eterna gratidão, D. Irma!!! 

Com justas razões, vocês, prezad@s leitor@s, provavelmente, já estão perguntando:
-Mas Professor, como D. Irma poderia aplicar as propostas libertárias de Rubem Alves, Fernando Pessoa e Paulo Freire, engaiolada nestas condições dolorosamente irreversíveis??!! Voar?! mas como?! 

Resposta: Não sei. Nunca soube. Creio que nunca saberei. Talvez, nenhum dos três pensadores o saiba, também!!
Sei o que a minha avó Delmira dizia: A morte por ser desgraça, não deixa de ser ventura, pois corta pela raiz, os males que a vida não cura“. 

E, como creio que os anjos são pássaros misteriosos e sublimemente encantados, vejo agora D. Irma fora da gaiola, nimbada de uma luz diáfana, sorridente, feliz, voando leve e solta, bem alto, livre, liberta, e torno a chorar. Na verdade, nem asas precisa, porque ela volita suavemente, o voo libertário do magnífico pássaro sem asas. 

Todavia, de uma coisa eu sempre tive certeza:
É marcante, a influência dela sobre minha vida, nos aspectos de liberdade, direito de escolhas e de ir e vir, sonhos desejos e realizações. 

Quando, durante uma avaliação comportamental, fui classificado com OBSTINADO, atribui boa parte disso, à convivência com ela. Tanto é que tenho realizado todos os meus sonhos, sem deixar nenhum para trás.
Todos…A começar pela linda família que constituí.

Sei que tenho voado pra caramba, e bem alto, e pra todas as direções, e por todos lados e lugares ao redor do mundo. Não há gaiola e/ou arapuca que me prenda.
Basta lerem minhas crônicas, para constatarem os meu testemunhos. Até mesmo a minha opção universitária por Professor Universitário Extensionista Inovador, teve influência de D. Irma. 

E mesmo na Extensão, a opção por Agroecologia e Agricultura Familiar, também teve influência dela. E agora que me aposentei e decidi continuar na Universidade como Professor Extensionista Voluntário Inovador, lembrei-me dela, novamente. 

Quando ganhei a poesia temática que motivou este site.
Quando a minha família constituída (Meirinha, J. Neto e Toninho) me manteve vivo naquele CTI gaiola do hospital Beneficência Portuguesa, após delicada intervenção cirúrgica no coração, dando-me razões de sobra para lutar pela vida, desafiando a morte iminente. 

Atestei que tudo valeu a pena…que tudo tem valido a pena…que vale a pena sair da gaiola para arriscar a voar livremente. 

*O passarinho azul*
(Dedicado ao Prof. Gilmar Tavares)

Vejam, vem vindo um passarinho azul!
Como é belo vê-lo voar…
Se mistura ao colorido do céu
E reflete a luz solar. 

Se prestarmos bastante atenção,
É possível ouvi-lo cantar.
São notas de alegria, esperança, motivação
Que nos despertam a vontade de crescer, e de ajudar. 

Ainda há muitos lugares neste mundo
Onde não existe nem música, nem cor.
Mas as sementes estão prontas: querem germinar.
Tudo que precisam é de um pouquinho de amor. 

Aprendemos isso com o passarinho azul,
E a ele queremos nos juntar!
A jornada é longa e exige persistência
Pois pra transcender é preciso se doar. 

Agora, sempre que olhar para o céu,
Você o verá radiante e multicor
Com passarinhos de vários tipos, em todo o seu esplendor,
Voando lado a lado com o passarinho azul.
(Lívia Nascimento-ONG-Engenheiros Sem Fronteiras-Núcleo Lavras).

Gratidão ESAL/UFLA. Eterna gratidão!! família abençoada!! Eterna gratidão, D. Irma!!! anjo libertário que sacrificou a própria liberdade para libertar-se…para libertar. “Missão cumprida“, diria minha mãe. 

 

Amei e fui amado

“Perto do meu ocaso, eu te bendigo, ó Vida,
porque nunca me deste esperança falida
nem trabalhos injustos, nem pena imerecida. 

Porque vejo no fim de meu caminho rude
que fui eu o arquiteto de meu próprio destino;
que se os méis ou o fel eu extraí das cousas
foi que nelas pus mel ou biles amargosas:
quando plantei roseiras, não colhi senão rosas. 

Às minhas louçãs vai suceder o inverno;
mas tu não me disseste que maio fosse eterno!
Julguei sem fim as longas noites de minhas penas;
mas não me prometeste noites boas apenas,
e, enfim, algumas santamente serenas… 

Amei e fui amado, o sol beijou-me um rosto.
Vida, nada me deves! Vida, estamos em paz!
(Amado Nervo) 

Fim da série. 

(Acessem as crônicas anteriores, clicando na franja “Blogs e Colunas“, acima do título da matéria atual. Em seguida, pode-se clicar na franja“Próxima página>“, no rodapé da página aberta, para continuar acessando-se mais crônicas anteriores).

 

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